Quando o diretor da Roscosmos, o camarada Dmitri Rogozin, soube que a NASA estava cogitando outras opções para levar astronautas à International Space Station (ISS) que não envolviam alugar um assento na Soyuz, a cápsula tripulada da agência espacial russa, ele disse que “talvez os EUA irão construir um trampolim pra ir para o espaço”. Bem, eu não sei o que exatamente o camarada Rogozin considera um trampolim, mas certamente ele não estava pensando em um foguete que pousa sozinho, muito menos em uma cápsula espaçosa e tecnológica.
Os ônibus espaciais americanos eram maneiros, mas em 1986 o Challenger explodiu durante o lançamento, e em 2003 o Columbia explodiu durante a reentrada. As tripulações das duas naves morreram.
Oito anos depois do acidente com o Columbia os EUA deixaram de enviar astronautas ao espaço por conta própria. No dia 8 de julho de 2011 a Atlantis foi lançada do pad 39A com quatro astronautas levando partes para a construção da ISS, e retornou dia 21 de julho, encerrando a era dos ônibus espaciais.

Depois disso, pra enviar gente lá pra ISS a NASA precisava ir de над, ou Uber em russo, e pagar alguns milhões de dólares pra Roscosmos por uma vaguinha na Soyuz. Acontece que essa vaguinha foi ficando cada vez mais cara, claro. É pura lógica de oferta e demanda: tem um gringo querendo subir e um camarada com vaga na cápsula; o camarada vai cobrar o quanto quiser, e se o gringo quiser ir, que pague.
Só que a Rússia não contava com um gênio playboy milionário filantropo coelho falastrão que enfiou na cachola que ia pra Marte e podia muito bem dar umas voltinhas no espaço no processo.
Em 2006 o sr. Elon Musk começou a brincar de rocket science com a SpaceX e o Falcon 1. Ele queria comprar uns foguetes russos, mas os camaradas não quiseram vender; ele voltou puto e resolveu que ia construir um. Depois de algumas falhas e uma quase falência o foguete funcionou, e Musk foi em frente, refinando o bicho. A meta dele era construir e usar um foguete que não precisasse ser jogado fora toda vez que fosse usado, afinal, é como se um avião comercial fosse destruído depois de um único voo. A SpaceX desenhou motores pros foguetes, aperfeiçoou o design dos estágios e fizeram testes, muitos testes. E foram muitas desmontagens rápidas não programadas até conseguir o que o Musk queria.
E conseguiu mesmo, a ponto de agora ser estranho quando o foguete – mais especificamente o Falcon 9, seja ele sozinho ou como parte do Falcon Heavy – NÃO pousa.
OK, foguete funcionando, Musk agora tinha um jeito de oferecer à NASA voos não-tripulados pra ISS pra enviar seja lá o que for que os cientistas da NASA enviam pra lá. A cápsula Dragon fez seu primeiro voo de teste em 2010, e em 2012 fez a primeira acoplagem com a ISS. Ponto para a SpaceX!
De 2012 pra cá foram inúmeras as missões de carga da Dragon, mas era preciso ir além: se a Dragon levava e trazia suprimentos com segurança, ela também seria capaz de levar e trazer humanos, certo?
Claro! A Dragon v2, ou DragonRider, ou ainda Crew Dragon, foi lançada com sucesso no dia 2 de março de 2019, levando para a ISS um único passageiro: um indicador de gravidade zero.
Super high tech zero-g indicator added just before launch! pic.twitter.com/CRO26plaXq
— Elon Musk (@elonmusk) March 2, 2019
E então chegamos no dia de hoje. Era pra ter sido na quinta-feira, mas São Pedro resolveu dar uma de Capitão Nascimento e não subiu ninguém porque o tempo tava mais feio que bater na mãe. A transmissão ao vivo do canal oficial da SpaceX bateu quase dois milhões de expectadores e o trampolim lançou para a ISS, do pad 39A (sim, aquele mesmo do lançamento da Atlantis), dois astronautas americanos, Robert Behnken e Douglas Hurley, dentro de uma Crew Dragon acoplada a um Falcon 9 que, claro, lançou o segundo estágio no espaço, voltou e pousou na balsa Of course I still love you.

Considerando, então, as falhas dos ônibus espaciais, a recusa dos russos em vender coisas pro Musk, as falhas e acertos dos foguetes da SpaceX, a soberba do camarada diretor da Roscosmos e a vontade dos EUA de retomarem a independência espacial depois de quase vinte anos, podemos concluir, juntando todas as pecinhas, que:
- os EUA queriam voltar sozinhos pro espaço e conseguiram;
- a missão foi um baita dum sucesso;
- a NASA não precisa mais se sujeitar à regra de oferta e demanda corretamente aproveitada pela Roscosmos;
- a SpaceX fez de novo;
- o cara que negou os ICBMs pro Musk deve se arrepender amargamente disso até hoje;
- o trampolim americano funciona pra caralho.
HA! “The trampoline is working” – Elon. 😂#MicDrop pic.twitter.com/mGufZXyYKj
— Chris B – NSF (@NASASpaceflight) May 30, 2020
Pro despeito não ficar feio, já que todas as agências espaciais relevantes do mundo (eu disse relevantes, a AEB não trabalha de final de semana) parabenizaram a SpaceX e a Nasa pelo sucesso da missão de lançamento, a Roscosmos soltou uma notinha no Twitter:
Roscosmos Executive Director on Crewed Space Programs Sergey Krikalev address on the successful Falcon 9 carrier rocket launch with Crew Dragon crewed spacecraft pic.twitter.com/25pDIdIXLe
— РОСКОСМОС (@roscosmos) May 30, 2020
Pelo nome da pessoa que assinou a nota, imagino que o camarada Rogozin deva estar arrancando as calças pela cabeça. E se eu fosse o Musk ou o Jim Bridenstine, o administrador da NASA, nomearia todas as missões tripuladas para a ISS como Trampolim Espaçoso. Só pelo deboche.

A Crew Dragon – que agora é Endeavor, rebatizada pelos astronautas – pode levar até sete passageiros e tem um painel touchscreen de dar inveja a todo mundo. Ela é tão espaçosa que no stream da missão – que você vai poder ver clicando na foto acima – os astronautas fizeram um tour por ela, mostrando toda a magnificência dracônica da cápsula. E como levaram um indicador de gravidade na primeira missão de teste, nessa também teve um.

E é isso aí. Os EUA estão de volta ao jogo de mandar gente pro espaço. E a gente aqui da Terra – pelo menos os que não estamos preocupados em ficar lacrando toda hora no Twitter – fica babando no que a rocket science é capaz de fazer.
Godspeed, Bob and Doug!
Fontes: este livro, o site da SpaceX, e a Wikipedia em inglês (aqui e aqui).