Em tempos de bloqueio do Twitter no país que respira fumaça, uma anedota sobre um americano burro (com o perdão do pleonasmo) acabou sendo relegada a blueets de curiosos. O caso que contarei é sobre uma extreme danger noodle, um merdeiro que acha que antídoto pra veneno de cobra é coisa de frutinha e o que acontece quando um merdeiro resolve mexer com uma extreme danger noodle.
Spoiler: ele precisou de antídoto.
Vamos falar da cobrinha?
Pra começar, vamos entender o que é uma taipan ocidental. Esse réptil, cujo nome científico é Oxyuranus microlepidotus, é uma serpente peçonhenta endêmica da região semiárida centro-oriental da Austrália que chega a alcançar 2,5 m de comprimento.

Sim, você leu certo, é da Austrália. Por definição, tudo o que vem da Austrália quer te matar. Com a taipan ocidental não é diferente; apesar de ser extremamente raro encontrar uma delas na natureza, já que ela vive escondida, ela é do tipo de bicho que só ataca quando é ameaçada, e ela ataca pra matar, porque ela não morde uma vez só, ela vai mordendo enquanto estiver perto da presa e inoculando peçonha no processo. Ela evoluiu pra ser capaz de matar grandes predadores (como mamíferos); a toxina presente na peçonha dela tem um LD-50 de 0,025 miligramas por quilo (mg/kg). Quando a dose letal média é pequena assim, o negócio é MUITO letal. Tão letal que zoológicos só têm permissão de manter espécimes vivos se tiverem o antídoto no estoque.
Curiosamente, apesar de ser tão letal, não há casos de mortes envolvendo acidentes com a taipan ocidental. Os tratadores dessas serpentes sempre utilizam todos os EPIs possíveis e imagináveis, com proteção dupla nos viveiros. Quando acontece algum acidente nesses locais, a administração rápida do antídoto garante a sobrevivência da vítima. Sim, sobrevivência, porque por mais que o antídoto entre em ação para anular as toxinas, o estrago que a peçonha faz no corpo humano até ser neutralizada não é pequeno.
A taipan ocidental produz neurotoxinas pré- e pós-sinapticas, hemotoxinas, miotoxinas e uma enzima chamada hialuronidase. As neurotoxinas pré-sinápticas causam paralisia ou fraqueza muscular, e as pós-sinápticas bloqueiam os receptores de acetilcolina, que faz com que os músculos parem de funcionar. As hemotoxinas são procoagulantes, e a ação delas é tirar a capacidade que o sangue tem de coagular. Miotoxinas causam miólise, a destruição do tecido muscular, o que leva à rabdomiólise, que é a degradação do tecido musculoesquelético. A hialuronidase aumenta a taxa de absorção do veneno. OU SEJE, você é mordido e aí seu corpo inteiro começa a entrar em falência. Primeiro vai dar dor de cabeça, ou náusea, ou vômito, ou dor abdominal, ou diarreia, ou tontura, ou convulsão – ou tudo isso junto, o que é conhecido como colapso. Mas você ainda tá bem, porque quando a peçonha se espalha seus músculos passam a se degradar (lembra que o coração é um músculo, né? beleza) enquanto começam a paralisar, seu sangue perde a capacidade de coagulação e você começa a sangrar (inclusive internamente), daí a rabdomiólise vai garantir que seus rins vão pro caralho porque filtrar tanto detrito no sangue causa um colapso nos rins, tudo isso enquanto seu diafragma também vai desistir de trabalhar e você não vai conseguir respirar sozinho.
Resumindo: você vai morrer, e não vai ser de forma agradável.
Como o antídoto age neutralizando as toxinas, mas algumas delas, como as pré-sinápticas, não respondem ao antídoto, quem sobrevive a uma picada dessa cobra vai ter algumas complicações neurológicas. É basicamente sobrevivência, mesmo.
Em meio ao que aconteceu, o dr. Bryan Fry, professor associado da University of Queensland, na Austrália, fez uma postagem bastante detalhada no Facebook sobre a taipan ocidental, sua peçonha e os efeitos no corpo humano. Tá em inglês, mas é uma leitura bastante interessante, bem mais completa que esse meu resumo.
Quem é o merdeiro?
Jeffrey “Jeff” Leibowitz é um professor e lutador de Jiu-jitsu que mora em Florence, Carolina do Sul. Ele é conhecido na comunidade de répteis como o imbecil cara que manuseia livremente suas cobras, sem nenhum tipo de EPI ou proteção. Ele simplesmente pega as cobras na mão como se fossem minhoquinhas inofensivas, porque segundo ele, “Consigo controlar seus movimentos. Não preciso ter medo delas”. Ele também é conhecido por ter, certa vez, declarado que antídoto é coisa de frutinha:

No Instagram do cara é possível ver vários outros vídeos em que ele fica manuseando as cobras que tem tinha. Porque ele não tem tinha só a taipan ocidental, eram CATORZE cobras: uma mamba verde, duas víboras-do-gabão, uma fer-de-lance, uma cobra-da-morte, uma cascavel-diamante-ocidental, duas cobras negras da floresta, cinco outros tipos de cascavéis diferentes e a taipan ocidental.
Mas por que isso virou um Pink Octopus?
Porque menos de 24 horas depois que ele gravou o vídeo manuseando a taipan ocidental, na madrugada do dia 6 de setembro, aproximadamente às 2h (horário de Brasília), esse merdeiro ligou pro serviço de emergência dizendo que havia sido picado por uma de suas cobras. E pro azar do imbecil, a que mordeu ele foi justamente a taipan ocidental. Lembra que ali em cima ele disse que antídoto era coisa de frutinha? Então, ele não tinha antídoto… Aí ele foi parar no hospital McLeod, mais precisamente na UTI. Lembra que mais em cima eu listei alguns componentes da peçonha e quais são os problemas que essas neurotoxinas causam? Pois é. Ele ia precisar da coisa de frutinha.


As postagens criaram um pandemônio de gente comentando no grupo Venomous Snakes Classifieds (que é dele) e em postagens dele no Facebook e no Instagram. Os comentários variam entre pessoas da comunidade dizendo basicamente bem-feito, pessoas lamentando que usaram antídoto nele, pessoas torcendo pra que ele saia dessa e pessoas xingando quem disse bem-feito.
Alguns zoológicos foram contatados para doar o antídoto pro cara, mas lembra que eu falei que zoológicos não podem manter espécimes vivos de uma cobra se não tiver antídoto? No relato do dr. Bryan ele comenta que apoia a decisão de uma diretora de um zoológico que se recusou a enviar o antídoto porque isso colocaria em perigo todos os tratadores do zoológico. Eu sinceramente faria o mesmo.

O maior problema nesse caso é a mídia negativa, porque a comunidade de ofídios é composta, em sua maioria, de pessoas responsáveis que tem muito cuidado, amor e RESPEITO por esses répteis alongados e meio maluquinhos. Com uma notícia dessas a tendência é que legislações e regulações sejam revistas, e aí quem não tem nada a ver com isso (incluindo os pobres animais) acabam se ferrando – isso foi inclusive apontado em inúmeros comentários.
Segundo o site de notícias WBTW News, depois que o cara foi levado pro hospital e entubado a polícia entrou no caso, pois foram avisados de que poderia haver outras cobras na casa. As catorze cobras (e dois gatos) foram retirados da casa, e como não foi possível encontrar abrigo pras cobras por questões ambientais e de saúde (O CARA MANTINHA AS COBRAS DENTRO DE TUPPERWARES!!!), todas elas foram sacrificadas. Até as coitadas que não tinham nada a ver com o assunto perderam suas vidinhas porque o imbecil decidiu que ia fazer o que bem entendia com as cobras e foda-se proteção ou precaução.
Voltando ao pink octopus do Facebook, em meio a todos os comentários, a filha de Jeff, Kassidy, publicou alguns comentários sobre o estado de saúde do pai.


E hoje (10/09/2024) o próprio Jeff, ou muito provavelmente alguém em nome dele, postou a seguinte atualização:

A cereja do bolo é que isso tudo rolou nos Estados Unidos. Não existe SUS nos Estados Unidos, existe no máximo plano de saúde privado (que eu não sei como funciona) que cobre uma parte dos gastos. Quer dizer, cobriria, se esse merdeiro não tivesse provocado o acidente ofídico. Isso significa que muito provavelmente ele não vai ter cobertura nenhuma da seguradora de saúde, e vai ter que arcar com os custos da internação e recuperação do próprio bolso. Se você já ouviu falar que o GoFundMe é o plano de saúde da maioria dos americanos, já entendeu que esse cara, além de ter se fodido fisicamente, também se fodeu monetariamente, e provavelmente endividou as próximas dez gerações da família dele. Pra ter uma ideia de como funciona, o povo lá precisa pagar pelo passeio de ambulância quando acontece alguma merda, além de todos, e eu disse TODOS, os procedimentos, consultas, medicamentos e insumos utilizados durante uma internação. Eles cobram até gaze e linha de sutura. Recentemente uma brasileira contraiu botulismo em Aspen ao comer uma colher de comida enlatada contaminada com a bactéria Clostridium botulinum e sua estadia no hospital até ser transferida de volta para o Brasil ficou em US$ 2 mi (cerca de R$ 13 mi na cotação de hoje). Ficar doente não é barato na gringa, não.
Conclusão
E é nesse pé em que estamos hoje. O cara infelizmente ainda tá vivo, provavelmente vai sobreviver ao ataque, e eu espero sinceramente que ele tenha todas as sequelas possíveis. Isso seria um pouco de justiça pras catorze cobras que perderam suas vidas por causa de um babaca arrogante com complexo de deus e uma bela lição de vida pra ele, que vai ter todo o tempo do mundo pra se arrepender de ser um imbecil babaca.
Para quem é um pouco mais inteligente do que esse cara, ficam algumas lições:
- Não manuseie répteis perigosos sem o uso apropriado de EPI;
- Se fizer coleção de répteis perigosos, mantenha um estoque de antídoto à mão;
- Não dê uma de macho alfa dizendo que antídoto é coisa de frutinha;
- Se tiver essa opinião, não coloque ela numa rede social;
- Não saia pedindo antídoto se você colocou sua opinião numa rede social;
- Não espere receber antídoto de pessoas responsáveis que estão putas com o seu comportamento irresponsável;
- Como regra geral, não seja como Jeff Leibowitz.