Um dia a pequena Lise começou a traduzir músicas e gostou da coisa, e agora estamos aqui, 25 anos depois, brincando de tradução até hoje. Mas a pequena Lise nunca achou que traduções estavam erradas só porque ela não gostou do que estava escrito, e a Lise de hoje está particularmente furiosa com trocadores de palavras ao léu.
Se bem que isso é literalmente só mais uma quarta-feira para um tradutor.
Vamos voltar ao início do termo tradução, e por início eu quero dizer sua origem etimológica. Tradução vem do latim trāductiō, trāductiōnis (um substantivo de terceira declinação, portanto), que significa “transferência”; por sua vez, tal substantivo veio de trādūcō (primeira pessoa do singular do verbo trādūcere, “levar para o outro lado”), composto pela preposição trāns (“além de, para além de) e por dūcō (primeira pessoa do singular do verbo dūcere, “conduzir”). Eu amo etimologia, na moral.
Então temos que tradução tem, desde sua origem, a noção de transpor, transferir algo de um lugar para o outro. Em biologia, por exemplo, temos “o processo biológico no qual a sequência nucleótica de uma molécula de mRNA (RNA mensageiro) é utilizada para ordenar a síntese de uma cadeia nucleotidica, cuja sequência de aminoácidos determina uma proteína” (thanks, Wikipedia); já no contexto do mormonismo, diz-se que uma pessoa é traduzida quando ela é fisicamente alterada por Deus, deixando de ser mortal e se tornando imortal (mais informações aqui). Em se tratando de texto, tradução é a transposição de algo escrito de um idioma a outro.
Então, grosso modo, a gente pode pegar, por exemplo, uma frase simples como “olá, como vai?” em português e transpor pra “hello, how are you?” em inglês, certo? Certo. Mas aí as coisas começam a ficar divertidas, porque uma das expressões não é igual à outra. “Mas Lise, as duas significam a mesma coisa”, dirá você, caro leitor. Sim, sem dúvida, ambas são expressões de saudação, mas há um pronome em inglês que não tem no português.
Então vamos pro alemão. “Hallo, wie geht’s?” é um equivalente às duas expressões anteriores, mas ela também não é igual a elas. Em relação ao português, sobra um pronome (es); em relação ao inglês, falta um pronome (dir).
Pulando pro francês, “Bonjour, comment ça va?” se aproxima bastante da expressão em inglês, mas o ça já não está contido nem na expressão em alemão, nem em português. E “bonjour” pode ser “olá” ou “bom dia”, dependendo do contexto.
Ah, o contexto… que coisa belíssima. Ele impede que a gente traduza “entre, meu bem” como between my well ou “a porca torce o rabo” como the nut cheers the tail. No primeiro caso teríamos uma confusão entre classes de palavras (aquelas coisas que a tia Cotinha queria que a gente decorasse: substantivo, verbo, adjetivo, advérbio, pronome etc.) que uma análise sintática daria conta, mas no segundo caso temos um problema cultural.
Agora, meus queridos leitores, é que a coisa fica mais divertida.
Localização é o nome que se dá à tradução de determinados textos. Seja qual for a mídia – livro, jogo, filme, podcast etc. – alguns textos não ficam legais se as marcas culturais forem mantidas, pois aí teremos uma falha na comunicação e o resultado será algo que não faz um puto dum sentido pro consumidor daquela mídia.
Um exemplo clássico é Chaves. O seriado mexicano que faz sucesso aqui no Brasil até hoje teve MUITA localização, mas muita MESMO. A começar pelo nome do seriado: El Chavo del Ocho significa literalmente “O menino do Oito” – sendo Oito não só o número da casa em que ele morava, mas também o número do canal em que passava o seriado. Tipo a gente chamando a Globo de canal 5 até hoje. Enfim, chavo em espanhol mexicano significa simplesmente “menino”. Aqui no Brasil foi transliterado para Chaves, e tudo bem. Chilindrina virou Chiquinha, Don Ramón virou Seu Madruga, Acapulco virou Guarujá e, quando a turma da vila foi ver um filme no cinema, Chaves preferia ter visto o filme do Pelé, já que El Chanfle, que era o filme no original, estrelado por Bolaños, não ia fazer o menor sentido pra gente.
Ou seja: a localização serve pra pegar os elementos da cultura de partida e adaptá-los de forma coesa para a cultura de chegada. A palavra aqui é realmente CULTURA, porque o idioma é parte de uma cultura, e não o contrário. O único doido que partiu de um idioma pra criar uma cultura (ou um universo) foi o Tolkien, mas linguistas somos malucos e, de qualquer forma, o Quenya e o Syndarin são idiomas artificiais; os idiomas naturais não funcionam assim.
Pra ilustrar isso, vamos pegar um exemplo exaurido, já: as trocentas palavras que os inuits têm pra neve. Pra nós, brasileiros, que conhecemos neve via filme ou quando o Sul resolve esfriar mais, o substantivo “neve” é suficiente, certo? Mas para os inuits, que literalmente vivem na neve, é diferente. Temos aput pra designar neve no chão, qana pra especificar neve caindo, piqsirpoq para aquela neve sendo levada pelo vento e qimuqsuq para uma pilha de neve. Essas palavras surgiram no vocabulário inuit porque, ora, é assim que a neve se comporta no território deles, e isso faz parte da cultura inuit. Mas pra nós, que colamos algodão na árvore de Natal enquanto faz 30 °C lá fora, não faz sentido ter uma palavra específica pra “neve caindo”, mas faz sentido ter uma palavra específica pra ir pra praia em dezembro: veranear, até onde eu sei, não tem equivalente específico em outra língua, porque é próprio da nossa cultura. Se fôssemos traduzir pro inglês, por exemplo, teríamos que ir pelo caminho da aproximação, que seria algo como “summer break”, mesmo que veranear não tenha exatamente o sentido de férias de verão.
Aí chegamos na graaaaaaaaaaaaaaaaaaande polêmica do Twitter de hoje: uma ruma de millennial puto porque “traduziram” o nome da Wandinha Addams no seriado Wednesday, lançado pela Netflix por esses dias.
[suspiro de cansaço]
Vamos lá. O nome da moça em questão é baseado num punhado de versinhos sem autoria definida cuja primeira fonte impressa data de 1838. Vamos lê-los:
Monday’s child is fair of face,
Tuesday’s child is full of grace.
Wednesday’s child is full of woe,
Thursday’s child has far to go.
Friday’s child is loving and giving,
Saturday’s child works hard for a living.
And the child born on the Sabbath day
Is bonny and blithe, good and gay.
Por isso a moça chama Wednesday no original. Lê-se /ˈwɛnzdeɪ/. Ou Uénzdei. Mas, assim como El Chavo, não faz sentido manter o nome assim, porque os versinhos não são conhecidos por aqui, não fazem parte da nossa cultura; ou seja, pra nós não faz diferença alguma de onde saiu esse nome. Além disso, Wednesday é uma palavra do inglês. Não ia fazer um puto dum sentido deixar assim. Então, lá quando trouxeram a série pra cá, optaram por transliterar o nome da moça de Wednesday pra Vandinha (sim, era Vandinha com V, a Netflix que adotou o W no lugar do V), porque vamos concordar, Quarta-Feira Addams ia ficar pra lá de esquisito. Caso nosso querido português tivesse mantido os nomes dos dias da semana de acordo com os deuses pagãos, provavelmente teríamos adotado o nome Merlina, como ela é conhecida no resto da América Latina, ou mesmo Mercúria, como sugeriu uma moça no Twitter.
Aliás, não foi só a Vandinha que teve o nome transliterado. O mordomo da família é o Tropeço; o irmão da Vandinha é o Feioso; o tio deles é o Tio Chico. Mãozinha é meio óbvio, acredito, e o primo Itti ficou assim mesmo porque não é tão estranho assim, assim como Gomez (que já foi chamado de Covas, numa transliteração hilária e que eu aprovo veementemente) e Mortícia ficaram com seus nomes originais. Ninguém, absolutamente NINGUÉM que assistiu os filmes do começo da década de 1990 ou conhece a história de alguma forma chama o Tropeço de Lurch – pronunciar essa palavra é um pesadelo! – ou o Mãozinha de Thing.
“Mas Lise não pode traduzir nome próprio!”
Primeiro, os casos citados e muitos, muitos outros (ou você chama o Caco de Kermit, a Sininho de Tinkerbell e a Branca de Neve de Schneewitchen?) não são traduções propriamente ditas; são, como já explicado, transliterações adotadas no processo de localização do texto. Como bem lembrou o André, em Pokémon os nomes Musashi e Kojiro foram transliterados para Jesse e James – e Jesse James foi um famoso fora da lei americano.
Segundo, tradução de nome não existe. O que existe é a evolução de um nome de uma origem única para outros idiomas. Por exemplo, para o horror dos Potterheads mais aficionados, James e Tiago SÃO O MESMO NOME, transliterados em idiomas diferentes. Os dois nomes têm a mesma origem hebraica, יעקב, ou Iacobus, que é a transliteração em latim. Ou seja, Jacob, Jacó, James, Tiago, Diogo, Jaime, até Jaqueline vem tudo da mesma origem.
Terceiro, e agora a alma de tradutora fala mais alto, tradutores, estando trabalhando com localização ou não, pensam cuidadosamente no que estão fazendo. Fazem escolhas conscientes baseados nos conhecimentos adquiridos da cultura de partida e compõem um texto adequado para a cultura de chegada. Tradutores têm uma base de conhecimento bastante ampla e geralmente estudam por anos a respeito de todas as minúcias da língua e da linguagem para que, ao digitarem – ou escreverem – o último ponto do texto, a tradução resultante traga todos os aspectos importantes e indispensáveis de uma obra. A técnica tradutória não é perfeita, mas a gente tenta o máximo possível. E opiniões do tipo “não gostei”, sem nenhum tipo de embasamento técnico, não passam de opiniões, mesmo. Prezamos pela qualidade do texto, e, bem, fica aí a dica para quem tá esperneando por causa de uma transliteração: estudar tradução é legal, causa umas explosões de cabeça bem maneiras.